Agostinho
Neto
Obras
poéticas de Agostinho Neto: -
Quatro Poemas de Agostinho Neto (1957, Póvoa do Varzim, e.a.). -
Poemas (1961, Lisboa, Casa dos Estudantes do Império). -
Sagrada Esperança (1974, Lisboa, Sá da Costa,inclui os poemas dos
dois primeiros livros). - A Renúncia
Impossível (1982, Luanda, INALD (edição póstuma). Poémas
de Agostinho Neto: O
CHORO DE ÁFRICA O choro durante
séculos nos seus olhos traidores pela servidão dos homens no
desejo alimentado entre ambições de lufadas românticas nos
batuques choro de África nos sorrisos choro de África nos
sarcasmos no trabalho choro de África
Sempre
o choro mesmo na vossa alegria imortal meu irmão Nguxi e amigo Mussunda no
circulo das violências mesmo na magia poderosa da terra e da vida
jorrante das fontes e de toda a parte e de todas as almas e das hemorragias
dos ritmos das feridas de África e mesmo
na morte do sangue ao contacto com o chão mesmo no florir aromatizado
da floresta mesmo na folha no fruto na agilidade da zebra na secura
do deserto na harmonia das correntes ou no sossego dos lagos mesmo na beleza
do trabalho construtivo dos homens o choro
de séculos inventado na servidão em histórias de dramas
negros almas brancas preguiças e espíritos infantis de África as
mentiras choros verdadeiros nas suas bocas o
choro de séculos onde a verdade violentada se estiola no circulo de
ferro da desonesta força sacrificadora dos corpos cadaverizados inimiga
da vida fechada em estreitos cérebros
de máquinas de contar na violência na violência na
violência O choro de África é
um sintoma Nós temos em nossas mãos
outras vidas e alegrias desmentidas nos lamentos falsos de suas bocas - por
nós! E amor e os olhos secos.
(Poemas, 1961)
ADEUS
À HORA DA LARGADA Minha Mãe
(todas as mães negras cujos filhos partiram) tu me ensinaste a esperar como
esperaste nas horas difíceis Mas a vida matou
em mim essa mística esperança Eu
já não espero sou aquele por quem se espera Sou
eu minha Mãe a esperança somos nós os teus filhos partidos
para uma fé que alimenta a vida Hoje somos
as crianças nuas das sanzalas do mato os garotos sem escola a jogar
a bola de trapos nos areais ao meio-dia somos nós mesmos os contratados
a queimar vidas nos cafezais os homens negros ignorantes que devem respeitar
o homem branco e temer o rico somos os teus filhos dos bairros de pretos além
aonde não chega a luz elétrica os homens bêbedos a cair abandonados
ao ritmo dum batuque de morte teus filhos com fome com sede com vergonha
de te chamarmos Mãe com medo de atravessar as ruas com medo dos homens nós
mesmos Amanhã entoaremos hinos à
liberdade quando comemorarmos a data da abolição desta escravatura Nós
vamos em busca de luz os teus filhos Mãe (todas as mães negras
cujos filhos partiram) Vão em busca de vida.
(Sagrada Esperança) A
RENÚNCIA IMPOSSÍVEL
Negação Não
creio em mim Não existo Não quero eu não quero ser
Quero destruir-me atirar-me
de pontes elevadas e deixar-me despedaçar sobre as pedras duras
das calçadas Pulverizar
o meu ser desaparecer não deixar sequer traço de passagem
pelo mundo quero que o
não-eu se aposse de mim Mais
do que um simples suicídio Quero que esta minha morte seja uma
verdadeira novidade histórica um desaparecimento total até
mesmo nos cérebros daqueles que me odeiam até mesmo no tempo
e se processe a História e o mundo continue como se eu nunca
tivesse existido como se nenhuma obra tivesse produzido como se nada tivesse
influenciado na vida se em vez de valor negativo eu fosse zero Quero
ascender elevar-me até atingir o Zero e desaparecer Deixai-me
desaparecer! Mas antes vou
gritar Com toda a força dos meus pulmões Para que o mundo
oiça: - Fui eu quem
renunciou a Vida! Podeis continuar a ocupar o meu lugar Vós os
que mo roubastes Aí
tendes o mundo todo para vós para mim nada quero nem riqueza nem
pobreza nem alegria nem tristeza nem vida nem morte nada Não
sou Nunca fui Renuncio-me Atingi o Zero E
agora vivei cantai chorai casai-vos matai-vos embriagai-vos dai esmolas
aos pobres Nada me pode interessar que eu não sou Atingi o
Zero Não contem comigo
para vos servir as refeições nem para cavar os diamantes
que vossas mulheres irão ostentar em salões nem para cuidar
das vossas plantações de algodão e café não
contem com amas para amamentar os vossos filhos sifilíticos não
contem com operários de segunda categoria para fazer o trabalho
de que vos orgulhais nem com soldados inconscientes para gritar com o
estômago vazio vivas ao vosso trabalho de civilização
nem com lacaios para vos tirarem os sapatos de madrugada quando
regressardes de orgias noturnas nem com pretos medrosos para vos oferecer
vacas e vender milho a tostão nem com corpos de mulheres para
vos alimentar de prazeres nos ócios da vossa abundância imoral
Não contem comigo Renuncio-me
Eu atngi o Zero E agora
podeis queimar os letreiros medrosos que às portas de bares hotéis
e recintos públicos gritam o vosso egoismo nas frases SÓ
PARA BRANCOS ou COLOURED MEN ONLY Negros aqui brancos acolá
E agora podeis acabar com
os miseráveis bairros de negros que vos atrapalham a vaidade Vivei
satisfeitos sem colour lines sem terdes que dizer aos frequeses negros que
os hotéis estão abarrotados que não há mais mesas
nos restaurantes Banhai-vos descansados nas vossas praias e piscinas que
nunca houve negros no mundo que sujassem as águas ou os vossos
nojentos preconceitos com a sua escura presença Dissolvei
o Ku-Klux-Klan que já não há negros para linchar! Porque
hesitais agora! ao menos tendes oportunidade para proclamardes democracias
com sinceridade Podeis
inventar uma nova história inclusivamente podeis inventar uma nova
mística direis por exemplo: No princípio nós criamos
o mundo Tudo foi feito por NÓS E isso nada me interessa Ah!
que satisfação eu sinto por ver-vos alegres no vosso orgulho
e loucos na vossa mania de superioridade Nunca
houve negros! A África foi construida só por vós A
América foi colonizada só por vós A Europa não
conhece civilizações africanas Nunca houve beijos de negros
sobre faces brancas nem um negro foi linchado nunca matastes pretos a
golpes de cavalomarinho para lhes possuirdes as mulheres nunca estorquistes
propriedades a pretos não tendes nunca tivestes filhos com sangue negro
ó racistas de desbragada lubricidade Fartai-vos
agora dentro da moral! Que
satisfação eu sinto por não terdes que falsear os padrões
morais para salvaguardar o prestígio a superioridade e o estômago
dos vossos filhos Ah! O
meu suicídio é uma novidade histórica é um sádico
prazer de ver-vos bem instalados no vosso mundo sem necessidade de jogos
falsos Eu elevado até
o Zero eu transformado no Nada-histórico eu no início dos
tempos eu-Nada a confundir-me com vós-Tudo sou o verdadeiro Cristo
da Humanidade! Não há
nas ruas de Luanda negros descalços e sujos a pôr nódoas
nas vossas falsidades de colonização Em
Lourenço Marques em New York em Leopoldville em Cape Town gritam
pelas ruas fogueteando alegrias nos ares -
Não há negros nas ruas! Nunca houve Não há
negros preguiçosos a deixar os campos por cultivar e renitentes
à escravização já não há negros
para roubar Toda a riqueza representa agora o suor do rosto e o suor do
rosto é a poesia da vida Viva a poesia da vida! Viva! Não
existe música negra Nunca houve batuques nas florestas do Congo Quem
falou em spirituals? Os salões enchem-se de Debussy Strauss Korsakoff
que não há selvagens na terra Viva a civilização
dos homens superiores sem manchas negróides a perturbar-lhe a estética!
Viva! Nunca houve descobrimentos
a África foi criada com o mundo O
que é a colonização? O que são os massacres de
negros? O que são os esbulhos de propriedade? Coisas que ninguém
conhece A história está
errada Nunca houve escravatura Nunca houve domínio de minorias
orgulhosas da sua força Acabei
com as cruzadas religiosas A fé está espalhada por todo o mundo
sobre a terra só há cristãos VÓS sois todos
cristãos Não
há infiéis por converter Escusais de imaginar mais infidelidades
religiosas para justificar repugnantes actos de barbarismo Não
necessitais enviar mais missionários a África nem nos bairros
de negros Nunca houve mahamba nem concepções religiosas
diferentes nunca houve religiosos a auxiliar a ocupação militar
Acabai com os missionários
os seus sofismas os seus milagres inventados para justificar ambições
e vaidades Possuis tudo TUDO
e sois todos irmãos Continuai
com os vossos sistemas políticos ditaduras democráticas isso
é convosco Explorai o proletariado matai-vos uns aos outros lutai
pela glória lutai pelo poder criai minorias fortes apadrinhai
os afilhados dos vossos amigos criai mais castas aburguesai as ideias
e tudo sem a complicação de verdes intrusos imiscuir-se
na vossa querida e defendida civilização de homens privilegiados
E agora homens irmãos
daí-vos as mãos gritai a vossa alegria de serdes sós
SÓS! únicos habitantes da terra Eu
artingi o Zero Isto significa
extraordinariamente a vossa ética Ao menos não percais a
ocasião para serdes honestos Se
houver terramotos calamidades cheias ou epidemias ou terras a defender
da evasão das águas ou motores parados em lamas africanas raios
vos partam! já não tereis de chamar-me para acudir as vossas
desgraças para reparar os vossos desastres ou para carregar com
a culpa das vossas incúrias Ide para o diabo! Eu
não existo Palavra de honra que nunca existi Atingi o Zero o
Nada Abençoada a hora
do meu super-suicídio para vós homens que construís
sistemas morais para enquadrar imoralidades O
sol brilha só para vós a lua reflecte luz só para vós
nunca houve esclavagistas nem massacres nem ocupações
da África Como até
a história se transforma num tratado de moral sem necessidade de
arranjos apressados! Os pretos
dos cais não existem Nunca foram ouvidos cantos dolentes misturados
com a chiadeira do guindaste Nunca pisaram os caminhos do mato carregadores
com sem quilos às costas são os motores que se queimam sob as
cargas Ó pretos submissos
humildes ou tímidos sem lugar nas cidades ou nos escaninhos da
honestidade ou nos recantos da força dançarinos com a alma
poisada no sinal menos polígamos declarados dançarinos de
batuques sensuais Sabeis que subistes todos de valor atingistes o Zero
sois Nada e salvastes o homem Acabou-se
o ódio e o trabalho de civilização e a náusea
de ver meninos negros sentados na escola ao lado de meninos de olhos azuis
e as extorções e compulsões e as palmatoadas e torturas
para obrigar inocentes a confessar crimes e medos de revolta e as
complicadas demarches políticas para iludir as almas simples Acabaram-se
as complicações sociais! Atingi
o Zero Cheguei à hora do início do mundo e resolvi não
existir Cheguei ao Zero-Espaço
ao Nada-Tempo ao eu coincidente com vós-Tudo E
o que é mais importante: Salvei o mundo!
1949
QUITANDEIRA A
quitanda. Muito sol e a quitandeira à sombra da mulemba. -
Laranja, minha senhora, laranjinha boa! A
luz brinca na cidade o seu quente jogo de claros e escuros e a vida brinca em
corações aflitos o jogo da cabra-cega. A
quitandeira que vende fruta vende-se. -
Minha senhora laranja, laranjinha boa! Compra
laranja doces compra-me também o amargo desta tortura da vida
sem vida. Compra-me a infância do espírito este
botão de rosa que não abriu princípio impelido ainda
para um início. Laranja, minha senhora! Esgotaram-se
os sorrisos com que chorava eu já não choro. E
aí vão as minhas esperanças como foi o sangue dos meus
filhos amassado no pó das estradas enterrado nas roças e
o meu suor embebido nos fios de algodão que me cobrem. Como
o esforço foi oferecido à segurança das máquinas à
beleza das ruas asfaltadas de prédios de vários andares à
comodidade de senhores ricos à alegria dispersa por cidades e eu me
fui confundindo com os próprios problemas da existência. Aí
vão as laranjas como eu me ofereci ao álcool para me anestesiar e
me entreguei às religiões para me insensibilizar e me atordoei
para viver. Tudo tenho dado. Até
mesmo a minha dor e a poesia dos meus seios nus entreguei-as aos poetas. Agora
vendo-me eu própria. - Compra laranjas minha senhora! Leva-me
para as quitandas da Vida o meu preço é único: - sangue. Talvez
vendendo-me eu me possua. - Compra laranjas!
(Sagrada esperança) VOZ
DO SANGUE Palpitam-me os sons do
batuque e os ritmos melancólicos do blue Ó
negro esfarrapado do Harlem ó dançarino de Chicago ó
negro servidor do South Ó negro de África negros
de todo o mundo eu junto ao vosso canto a
minha pobre voz os meus humildes ritmos. Eu
vos acompanho pelas emaranhadas áfricas do nosso Rumo Eu
vos sinto negros de todo o mundo eu vivo a vossa Dor meus irmãos.
(A renúncia impossível) MUSSUNDA
AMIGO
Para
aqui estou eu Mussunda amigo Para aqui estou eu Contigo Com
a firme vitória da tua alegria e da tua consciência
O ió kalunga ua mu bangele! O ió kalunga ua mu bangele-lé-leleé... Lembras-te? Da
tristeza daqueles tempos em que íamos comprar mangas e lastimar
o destino das mulheres da Funda dos nossos cantos de lamento dos nossos
desesperos e das nuvens dos nossos olhos Lembras-te? Para
aqui estou eu Mussunda amigo A vida a ti
a devo à mesma dedicação ao mesmo amor com que me salvaste
do abraço da jibóia à
tua força que transforma os destinos dos homens A
ti Mussunda amigo a ti devo a vida E escrevo
versos que não entendes compreendes a minha angústia? Para
aqui estou eu Mussunda amigo escrevendo versos que tu não entendes Não
era isto o que nós queríamos, bem sei Mas
no espírito e na inteligência nós somos! Nós
somos Mussunda amigo Nós somos Inseparáveis e
caminhando ainda para o nosso sonho No meu
caminho e no teu caminho os corações batem ritmos de noites
fogueirentas os pés dançam sobre palcos de místicas
tropicais Os sons não se apagam dos ouvidos
O ió kalunga ua mu bangele... Nós
somos! (Sagrada esperança) CONTRATADOS Longa
fila de carregadores domina a estrada com os passos rápidos Sobre
o dorso levam pesadas cargas Vão olhares
longínquos corações medrosos braços fortes sorrisos
profundos como águas profundas Largos
meses os separam dos seus e vão cheios de saudades e de receio mas
cantam Fatigados esgotados de trabalhos mas
cantam Cheios de injustiças calados
no imo das suas almas e cantam Com gritos
de protesto mergulhados nas lágrimas do coração e cantam Lá
vão perdem-se na distância na distância se perdem os
seus cantos tristes Ah! eles cantam...
(Sagrada esperança) ASPIRAÇÃO Ainda
o meu canto dolente e a minha tristeza no Congo, na Geórgia, no Amazonas Ainda o
meu sonho de batuque em noites de luar ainda
os meus braços ainda os meus olhos ainda os meus gritos Ainda
o dorso vergastado o coração abandonado a alma entregue à
fé ainda a dúvida E sobre
os meus cantos os meus sonhos os meus olhos os meus gritos sobre o
meu mundo isolado o tempo parado Ainda o
meu espírito ainda o quissange a marimba a viola o saxofone ainda
os meus ritmos de ritual orgíaco Ainda
a minha vida oferecida à Vida ainda o meu desejo Ainda
o meu sonho o meu grito o meu braço a sustentar o meu Querer E
nas sanzalas nas casas no subúrbios das cidades para lá
das linhas nos recantos escuros das casas ricas onde os negros murmuram:
ainda O meu desejo transformado em força inspirando
as consciências desesperadas. (Sagrada
esperança) POESIA
AFRICANA Lá no horizonte o
fogo e as silhuetas escuras dos imbondeiros de braços erguidos No
ar o cheiro verde das palmeiras queimadas Poesia
africana Na estrada a fila de carregadores
bailundos gemendo sob o peso da crueira No quarto a mulatinha dos olhos
meigos retocando o rosto com rouge e pó de arroz A mulher debaixo
dos panos fartos remexe as ancas Na cama o homem insone pensando em comprar
garfos e facas para comer à mesa No
céu o reflexo do fogo e as silhuetas dos negros batucando de braços
erguidos No ar a melodia quente das marimbas Poesia
africana E na estrada os carregadores no
quarto a mulatinha na cama o homem insone Os
braseiros consumindo consumindo a terra quente dos horizontes em fogo.
(No reino de Caliban II - antologia panorâmica de poesia africana de
ex- pressão portuguesa) Fogo e ritmo Sons
de grilhetas nas estradas cantos de pássaros sob a verdura úmida
das florestas frescura na sinfonia adocicada dos coqueirais fogo fogo
no capim fogo sobre o quente das chapas do Cayatte. Caminhos largos cheios
de gente cheios de gente em êxodo de toda a parte caminhos largos
para os horizontes fechados mas caminhos caminhos abertos por cima da
impossibilidade dos braços. Fogueiras dança tamtam
ritmo Ritmo na luz ritmo na cor ritmo
no movimento ritmo nas gretas sangrentas dos pés descalços ritmo
nas unhas descarnadas Mas ritmo ritmo. Ó
vozes dolorosas de África! (Sagrada
esperança)
FIRE
UND RYTHM
The sound of chains on the roads the
songs of birds under the humid greenery of the forest freshness in the smooth
symphony of the palm trees fire fire on the grass fire on the heat
of the Cayatte plains Wide paths full of people full of people an exodus
from everywhere wide paths to closed horizons but paths paths open atop the
impossibility of arm fire dance tum tum rhythm
Rhythm
in light rhythm in color rhythm in movement rhythm in the bloody cracks
of bare feerhythm on torn nails yet rhythm rhythm Oh
painful African voices (Sacred hope)
KINAXIXI
Gostava
de estar sentado num banco do kinaxixi às seis horas duma tarde
muito quente e ficar... Alguém viria talvez sentar-se sentar-se
ao meu lado E veria as faces negras da gente a subir a calçada
vagarosamente exprimindo ausência no kimbundu mestiço das
conversas Veria os passos fatigados dos servos de pais também servos
buscando aqui amor ali glória além uma embriagues em cada
álcool Nem felicidade nem ódio Depois do sol posto acenderiam
as luzes e eu iria sem rumo a pensar que a nossa vida é simples
afinal demasiado simples para quem está cansado e precisa de marchar.
(Sagrada esperança) NOITE Eu
vivo nos bairros escuros do mundo sem luz nem vida. Vou
pelas ruas às apalpadelas encostado aos meus informes sonhos tropeçando
na escravidão ao meu desejo de ser. São
bairros de escravos mundos de miséria bairros escuros. Onde
as vontades se diluíram e os homens se confundiram com as coisas. Ando
aos trambolhões pelas ruas sem luz desconhecidas pejadas de mística
e terror de braço dado com fantasmas. Também
a noite é escura. (Sagrada esperança) CONSCIENCIALIZAÇÃO
Medo
no ar! Em cada esquina sentinelas vigilantes
incendeiam olhares em cada casa se substituem apressadamente os fechos velhos das
portas e em cada consciência fervilha o temor de se ouvir a si mesma A
historia está a ser contada de novo Medo
no ar! Acontece que eu homem humilde ainda
mais humilde na pele negra me regresso África para mim com os
olhos secos. (Sagrada esperança) CIVILIZAÇÃO
OCIDENTAL
Latas
pregadas em paus fixados na terra fazem a casa Os
farrapos completam a paisagem íntima O
sol atravessando as frestas acorda o seu habitante Depois
as doze horas de trabalho Escravo Britar
pedra acarretar pedra britar pedra acarretar pedra ao sol à
chuva britar pedra acarretar pedra A
velhice vem cedo Uma esteira nas noites escuras basta
para ele morrer grato e de fome. (Sagrada
esperança) O
CHORO DE ÀFRICA O choro durante séculos nos seus olhos
traidores pela servidão dos homens no desejo alimentado entre ambições
de lufadas românticas nos batuques choro de África nos sorrisos
choro de África nos sarcasmos no trabalho choro de África Sempre
o choro mesmo na vossa alegria imortal meu irmão Nguxi e amigo Mussunda
no círculo das violências mesmo na magia poderosa da terra
e da vida jorrante das fontes e de toda a parte e de todas as almas e
das hemorragias dos ritmos das feridas de África e
mesmo na morte do sangue ao contato com o chão mesmo no florir aromatizado
da floresta mesmo na folha no fruto na agilidade da zebra na secura
do deserto na harmonia das correntes ou no sossego dos lagos mesmo na
beleza do trabalho construtivo dos homens o
choro de séculos inventado na servidão em historias de dramas
negros almas brancas preguiças e espíritos infantis de África
as mentiras choros verdadeiros nas suas bocas o
choro de séculos onde a verdade violentada se estiola no circulo de
ferro da desonesta forca sacrificadora dos corpos cadaverizados inimiga
da vida fechada em estreitos cérebros
de maquinas de contar na violência na violência na violência
O choro de África e' um sintoma Nos
temos em nossas mãos outras vidas e alegrias desmentidas nos lamentos
falsos de suas bocas - por nós! E amor e os olhos secos.
(Poemas, 1961) FOGO E
RITMO Sons de grilhetas nas estradas cantos
de pássaros sob a verdura úmida das florestas frescura na
sinfonia adocicada dos coqueirais fogo fogo no capim fogo sobre
o quente das chapas do Cayatte.
Caminhos largos
cheios de gente cheios de gente em êxodo de toda a parte caminhos
largos para os horizontes fechados mas caminhos caminhos abertos por cima
da impossibilidade dos braços. Fogueiras dança tamtam
ritmo Ritmo na luz ritmo na cor ritmo no movimento ritmo nas
gretas sangrentas dos pés descalços ritmo nas unhas descarnadas
Mas ritmo ritmo. Ó
vozes dolorosas de África!
Noite
Eu vivo nos bairros escuros do mundo sem luz nem vida. Vou
pelas ruas às apalpadelas encostado aos meus informes sonhos tropeçando
na escravidão ao meu desejo de ser. São
bairos de escravos mundos de miséria bairros escuros. Onde
as vontades se diluíram e os homens se confundiram com as coisas.
Ando aos trambolhões pelas ruas
sem luz desconhecidas pejadas de mística e terror de braço
dado com fantasmas. Também a noite
é escura.
CONFIANÇA O
oceano separou-se de mim enquanto me fui esquecendo nos séculos e
eis-me presente/ reunindo em mim o espaço condensando o tempo.
Na minha hisória existe o paradoxo
do homem disperso Enquanto o sorriso brilhava
no canto de dor e as mãos construíam mundos maravilhosos
john foi linchado/o irmão chicoteado
nas costas nuas a mulher amordaçada e o filho continuou ignorante
E do drama intenso duma vida imensa e
úti/ resultou a certeza As minhas
mãos colocaram pedras nos alicerces do mundo mereço o meu
pedaço de chão.
ANTIGAMENTE
ERA Antigamente era o eu-proscrito Antigamente
era a pele escura-noite do mundo Antigamente era o canto rindo lamentos Antigamente
era o espírito simples e bom
Outrora
tudo era tristeza Antigamente era tudo sonho de criança A
pele o espírito o canto o choro eram como a papaia refrescante para
aquele viajante cujo nome vem nos livros para meninos Mas
dei um passo ergui os olhos e soltei um grito que foi ecoar nas mais distantes
terras do mundo Harlem Pekim Barcelona Paris Nas
florestas escondidas do Novo Mundo E a pele o
espírito o canto o choro brilham como gumes prateados Crescem belos
e irresistíveis como o mais belo sol do mais belo dia da Vida. (1951)
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